A doença hemorrágica viral do Coelho-Bravo


O coelho-bravo (Oryctolagus cuniculus), um pequeno lagomorfo, tem sido uma das espécies mais fustigada dos últimos tempos com o aparecimento da mixomatose no Uruguai em 1896 (Sanarelli, 1898). Desde então as enfermidades não mais tiveram fim. Em 1984, cerca de 100 anos depois da mixomatose, a doença hemorrágica viral emerge na China (Liu et al, 1984). Em 2010 surge um novo vírus, designado Vírus da Doença Hemorrágica Viral 2, com um perfil genético e antigénio diferente do vírus anterior (Le Gall- Reculé etl al, 2011), tendo-se espalhado por toda a Europa muito rapidamente (à semelhança das doenças anteriormente referidas) e chegado a Portugal (Abrantes et al, 2013). 



Se na cunicultura industrial as doenças puderam ser controladas de uma forma mais ou menos célere e eficaz pelo recurso a vacinas, o problema toma outras dimensões na vida selvagem, onde a ciência em geral e a biossegurança em particular não conseguem cumprir o seu papel tão facilmente. O coelho-bravo Europeu encontra-se amplamente distribuído (Smith & Boyer, 2008), sendo na Península Ibérica identificáveis duas subespécies: Oryctolagus cuniculus algirusocupando Portugal e o Sul de Espanha e o Oryctolagus cuniculus cuniculus presente na região Nordeste da Península Ibérica. Entre estas subespécies ocorre naturalmente uma zona de hibridação percorrendo uma linha imaginária Noroeste-Sudeste (Smith & Boyer, 2008).

As reservas cinegéticas do país proporcionam a oportunidade de vermos fotografias de convívio dos caçadores, onde transparece uma camaradagem pouco comparável à de qualquer outra atividade ou profissão existente, na discussão de estratégias conjuntas no que toca a gestão da população de animais silvestres. Se virmos com atenção fotos que mostrem os resultados da caçada podemos reparar que a espécie predominante é o coelho-bravo, com os exemplares alinhados milimetricamente. Isto em fotografias tiradas nas últimas décadas do século transato. A partir desta data, os coelhos aparecem nas fotografias em menor número, perdendo lugar para as Perdizes-Vermelhas (Alectoris rufa), muitas delas com as pontas das asas gastas de tanto bater nos parques de voo (leia-se perdizes de repovoamento).

O caçador que, em Agosto, fazia fila para a vacina nas campanhas organizadas pelo Médico Veterinário Municipal, ou que levava atrelados de cães ao Centro de Atendimento Médico Veterinário com uma pasta com 30 ou 40 boletins sanitários, hoje em dia leva apenas meia dúzia de cães próprios para caça às aves (vulgo perdigueiro). Fruto do novo vírus da doença hemorrágica viral, a maioria das reservas de caça já desistiu do “orelhudo” e apenas algumas teimam nos esforços para alimentar os últimos exemplares, já com estatuto de nome individual.

O cenário enegrece quando nos damos conta que, face à impotência sentida, se exploram todos os métodos já descritos e improvisados nas reservas de caça para reverter a tendência da redução do coelho-bravo. É real que atualmente se experimentam no campo, sem qualquer conhecimento ou acompanhamento técnico-científico, alternativas às técnicas de reprodução, vacinação, alimentação e maneio que podem pôr em causa o futuro do nosso coelho-bravo, especialmente no que toca à pureza do seu património genético. A única subespécie cuja reprodução e repovoamento é permitida em Portugal é a Oryctolagus cuniculus algirus. É esta a maior preocupação de cerca de 800 caçadores e gestores cinegéticos que constituem o grupo “Recuperação do Coelho-Bravo” criado online este ano (pelo autor deste artigo) na plataforma Facebook.

É do conhecimento dos caçadores que se efetua, e aparentemente de forma deliberada, a aquisição e libertação de animais cuja pureza genética se classifica no mínimo – e reforço, no mínimo – como duvidosa. A simples consulta de anúncios na internet permite-nos constatar isto mesmo. Parece existir um “mercado negro” de coelhos (e aqui já é arriscado referir como coelho-bravo), que as entidades oficiais muito têm tentado combater. De acordo com a IUCN Red List, o coelho-bravo encontra-se classificado em “Quase ameaçado”, dados de 2008 e com tendência decrescente. Tememos que a próxima classificação seja ainda menos animadora (supostamente deveria ser feita de cinco em cinco anos, mas ainda não existe a de 2013…).

Grupo “Recuperação do Coelho-Bravo”

Enquanto caçador há meia dúzia de anos e ambientalista desde sempre, esta realidade fez-me sentir a necessidade de me dedicar ao assunto no âmbito da minha dissertação de final do curso de Mestrado Integrado em Medicina Veterinária intitulada “A doença hemorrágica viral do Coelho-Bravo – Estudo Preliminar”. Assim, foi criada uma parceria entre os membros do grupo “Recuperação do Coelho-Bravo”, o Laboratório de Anatomia Patológica da FMV-ULisboa e o Laboratório de Virologia do Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária para que, motivados pelo papel-chave desta espécie no ecossistema mediterrâneo (nomeadamente no lince ibérico e nas aves de rapina), seja possível atingir um objetivo comum, que passa pela busca urgente de estratégias de aplicação no terreno na recuperação do coelho-bravo.

Neste momento, em todo o país foi possível mobilizar diversas pessoas que pisam o campo todos os dias para procurar o mínimo sinal de doença nos coelhos-bravos, durante os próximos anos. Os primeiros comentários que ouvimos resumiam-se a: “Já nem coelhos vivos se veem, quanto mais mortos!”. Nas latrinas, em muitas zonas, já só restam fezes antigas, e a maior parte das tocas estão ocupadas por outros animais. Esta é a triste realidade. Felizmente existem ainda zonas onde os coelhos-bravos persistem porque houve um excelente acompanhamento das reservas de caça, ou mesmo sem que tenha havido qualquer intervenção humana, dispersas por todo o país, curiosamente por vezes ao lado de outras zonas cuja população de coelho foi completamente dizimada. Este facto permite inferir que a epidemiologia das doenças que afetam o coelho-bravo é bastante complexa.

Este ano, em particular a partir do mês de Março, localizámos já vários focos de doença hemorrágica viral (cuja sequência genotípica ainda está por determinar), nomeadamente e principalmente nas zonas de Santarém e Alentejo, pelo facto de serem, desde sempre, as principais zonas de presença destes lagomorfos e onde as reservas de caça existem em maior número. Estes focos da doença vão ser acompanhados do ponto de vista de caracterização histopatológica da doença, da epidemiologia, da importância dos diferentes vetores na transmissão e na aplicação de medidas profiláticas. Temos como objetivos a determinação da prevalência estimada realista, pelo facto de que apenas se encontra uma pequena percentagem de animais mortos. Isto porque a Doença Hemorrágica Viral leva muitas vezes à morte dos animais ainda dentro da toca de reprodução.

Das dezenas de animais que recebemos para o nosso estudo, cerca de 10% têm mais de 6 meses de idade, tendo 80% menos de 2 meses. Pretendemos obter a descrição anatomopatológica de vários órgãos que sabemos serem sede de multiplicação e ação viral, principalmente fígado, baço e pulmão. Pretendemos ainda avaliar a relevância dos diferentes possíveis vetores da doença.

Estando já em plena execução do projeto, foram instaladas várias armadilhas de captura de vetores numa região do país onde ocorreu um surto de mortalidade no início do mês de Abril. Foi também realizada a colheita de várias amostras de material biológico para análise. Esperamos que este tenha sido um bom arranque para este projeto que gostaríamos que representasse um marco na recuperação do coelho-bravo em Portugal.

Estamos a trabalhar em vários locais do país, a testar vários pontos que consideramos de interesse na epidemiologia da RHDV2. Posso referir que, numa reserva onde estamos a trabalhar, houve um foco de doença numa população de cerca de 3 a 4 centenas de animais onde apenas foram localizados 6 animais mortos e positivos para doença hemorrágica viral. Toda a população restante, sem qualquer programa de vacinação, permaneceu saudável. Embora muito provisório, demonstra já alguma imunidade que algumas populações estão a ganhar à doença. Na parte dos predadores pretendemos avaliar a sua importância na epidemiologia da doença, nomeadamente de que forma contribuem ou não na distribuição do vírus através das fezes, nunca esquecendo que uma população só é estável se resultar de uma harmonia entre todas as espécies da cadeia alimentar.

Recentemente realizámos um inquérito online, partilhado pelo grupo “Recuperação do Coelho-Bravo”, a uma amostra de 200 caçadores que caçam há pelo menos dez anos. Cerca de 80% dos caçadores refere ter caçado desde sempre o coelho-bravo. Nos resultados do estudo podemos aperceber-nos das implicações que a diminuição do coelho-bravo teve diretamente (número de abates) e indiretamente (número de cães de caça ao coelho). No que toca à redução do número de cães de caça ao coelho, 98,7% referiu a razão para a redução sendo a redução da população de coelho-bravo e 1,3% sendo de razão económica. A partir daqui era possível extrapolar implicações económicas e sociais, desde receita na clínica destes animais para o médico veterinário até ao latoeiro que faz chocalhos, de timbre único, para as dezenas de podengos de caça.

No passado dia 7 de maio foi anunciado pelo ministro da Agricultura a criação de um grupo multidisciplinar para discussão e investigação acerca desta temática no qual o INIAV é o organismo coordenador. Naturalmente foram incluídos os diversos grupos de caçadores. Esperamos que seja um grande passo para o coelho-bravo e um grande passo para os ecossistemas mediterrânicos.

Os caçadores encontram-se bastante desanimados, temem que a população daquele que é para muitos a sua razão de dedicação à cinegética nunca recupere os números de antigamente. A opinião dos caçadores sobre a percentagem de redução da população do coelho-bravo é muito desanimadora. Lembremo-nos que o caçador (obviamente com exceções) é o biólogo por excelência e aquele que maior número de censos faz anualmente, por percorrer o campo regularmente, e que apesar da má imagem que a sociedade lhe atribui é, quer queiramos quer não, dos poucos ecologistas que investe dinheiro do seu próprio bolso na gestão das populações de animais silvestres.


Bibliografia
1.Snarelli G. Das myxomatogene Virus. Beitrag zum Stadium der Krankheitserreger ausserhalb des Sichtbaren. Zbl. Bakt. 1898;23:865–873. (in German)

2.Liu SJ, Xue HP, Pu BQ, Qian NH: A new viral disease in rabbit. Anim Husb Vet Med 1984, 16:253-255.


3.Abrantes, J., Lopes, A.M., Dalton, K.P., Melo, P., Correia, J.J., Ramada, M., Alves, P.C., Parra, F.,Esteves, P.J., 2013. New variant of rabbit hemorrhagic disease virus, Portugal, 2012-2013.Emerg. Infect. Dis. 19, 1900–2. doi:10.3201/eid1911.130908

4.Le Gall-Reculé, G., Zwingelstein, F., Boucher, S., Le Normand, B., Plassiart, G., Portejoie, Y., Decors, A., Bertagnoli, S., Guérin, J.-L., Marchandeau, S., 2011. Detection of a new variant of rabbit haemorrhagic disease virus in France. Vet. Rec. 168, 137–8. doi:10.1136/vr.d697

5.Smith, A.T. & Boyer, A.F. 2008. Oryctolagus cuniculus. The IUCN Red List of Threatened Species2008:e.T41291A10415170. http://dx.doi.org/10.2305/IUCN.UK.2008.RLTS.T41291A10415170.en. Acedido a 27 de Abril 2017.


Fábio Abade dos Santos: Finalista do Mestrado Integrado em Medicina Veterinária na FMV-UL. Curso de Formação Avançada em Medicina e Maneio em Cunicultura. Colaboração desde 2015 na gestão de população de coelho bravo no Projeto Life Berlengas, onde foi identificado RHDV2 em 2016 (em processo de publicação). Colaboração em diversas ações de gestão de população, repovoamentos e instalações de reprodução de coelho bravo em reservas cinegéticas.

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